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Pasolini

... Meu pai, quando nasci, era tenente de infantaria: pertencia a uma antiga família de Ravena, e tinha esbanjado todo o património - passional, sensual e violento de carácter: e fora parar à Líbia, sem um tostão; assim começara a carreira militar, pela qual viria a ser depois deformado e reprimido até ao conformismo mais definitivo. Isto nunca o pôde contentar, antes pelo contrário angustiou-o sempre, até uma forma quase paranóica nos últimos anos, no regresso da sua terceira guerra. Contava comigo, com a minha carreira literária, desde pequeno, pois escrevi as primeiras poesias aos 7 anos: intuíra, pobre homem, mas não previra, as satisfações, as humilhações. Acreditava poder conciliar a vida de um filho escritor com o seu conformismo. A inconciabilidade fê-lo enlouquecer: ao compreender deixou de compreender... Para nada lhe servia a sua agudíssima inteligência: era um instrumento que nunca encontrava verdadeiro uso. Exaltava-se, barafustava, esbracejava: estava no mundo para sofrer, e quanto nos fez sofrer, a mim e a minha mãe! Quando em 1942 saiu o meu primeiro livro, Poesie a Casarsa (em dialecto friulano! Coisa absurda para ele que, oficialzeco de primeira apanha, era capitão em Casarsa, e ali conhecera minha mãe, apoderando-se imediatamente dela, com a sua prepotência infantil e centralizadora): recebeu-o no Quénia, onde estava prisioneiro. Mas apesar do absurdo da língua usada, era dedicado a ele, e isto consolava-o, mimava-o.
Quando voltou, eu estava em Casarsa, com minha mãe: estava perdido como uma interminável intimidade que fazia do Friuli a sua sede objectiva. Meu irmão Guido morrera na resistência. Minha mãe e eu estávamos meio destruídos pela dor. Caiu ele assim em Casarsa numa espécie de nova prisão: e começou a sua agonia longa de doze anos. Viu sair, um a um, os meus primeiros livros, em friuliano, seguiu os meus primeiros sucessos críticos, viu-me licenciado em letras: e no entanto compreendia-me sempre cada vez menos. O contraste era feroz: se alguém adoecesse de cancro e depois se curasse, teria provavelmente da sua doença a mesma recordação que eu tenho desses anos. Nos primeiros meses de 1950 estava eu em Roma com minha mãe: meu pai viria também, quase dois anos depois, e da Praça Costaguti passámos-nos para a Ponte Mammolo: já nos anos cinquenta começara a escrever as primeiras páginas  de Ragazzi di Vita. Estava desempregado, reduzido a condições desesperadas: poderia ter mesmo morrido. Depois, com a ajuda do poeta dialectal abruzês Vittorio Clemente encontrei uma colocação de professor numa escola privada de Ciampino, com 25 mil liras por mês. Dois anos de duro trabalho, de pura luta: e o meu pai sempre ali, à espera, só na pobre cozinha, com os cotovelos sobre a mesa e a cara apoiada entre as mãos, imóvel, mau, dolente; enchia o espaço do pequeno vão com a grandeza que têm os corpos mortos. Depois Bassani fez-me entrar na primeira encenação cinematográfica: e terminara os Ragazzi de vita que Bertolucci indicou a Garzanti. Meu pai pôde então tratar de uma mudança de casa que lhe dava satisfação, que acordava nele o prazer do mandar, da vaidade e do decoro burguês. Fomos viver para Monteverde, na Via Fonteiana: deixei a escola, continuei a trabalhar, a escrever versos, a avançar com Una vita violenta, a encenar, quando calhava: com a colaboração em Le notti de cabiria pude comprar também um fiat 600: que depois se tornou num mil e cem. Tive alguns prémios, o prémio "Città di Parma" por Ragazzi di vita, o prémio "Viareggio" por Le ceneri di Gramsci (antes tivera uma dezena de prémios menores, por versos dialectais, crítica, etc). Mas a vida em minha casa era sempre a mesma, sempre igual à morte. Meu pai sofria e fazia-nos sofrer; odiava o mundo, que ele reduzira a dois ou três dados obsessivos e inconciliáveis: era destes que bate continuamente e desesperadamente com a cabeça contra um muro. A sua verdadeira agonia durou muitos meses: respirava com custo, com contínuo lamento. Estava doente do fígado e sabia que era grave, que apenas um dedo de vinho lhe fazia mal, e bebia, pelo menos, dois litros dele por dia. Não se queria curar, em nome da sua vida retórica. Não nos ouvia, nem a mim nem a minha mãe, porque nos desprezava. Uma noite voltei para casa apenas a tempo de o ver morrer.

Eu agora continuo a mesma vida: trabalho de manhã em casa:tenho que pôr em ordem um novo volume de versos, La ricchezza: estou tomando as notas para o terceiro romance, Il Rio della Grana, comecei a traduzir Eneida. E depois os trabalhos práticos, o cinema, a redacção de "Officcina", etc. Saio depois do almoço, ao acaso, quase sempre até às duas da noite: passeio-me desde as borgate* e as periferias mais famosas até algumas  reuniões, não frequentes, com os amigos, Bertolucci, Bassani, Gadda, Moravia, Morante, Citati... Ou então também, algumas vezes, pelos salões de Bellonci, de De Giorgi, de Mastrocinque, de Astaldi... Mas a maior parte da minha vida passo-a para lá dos limites da cidade, para lá do fim da linha do eléctrico, como diria, hermetizando, um mau poeta neo-realista. Amo a vida ferozmente, tão desesperadamente, que não me pode advir daí algum bem: refiro-me aos dados físicos da vida, ao sol, à erva, à juventude; é um vício mais tremendo que o da cocaína, pois não me custa nada e existe com uma abundância desmedida, sem limites: e eu devoro, devoro... Como irá acabar, não faço ideia...

(* Bairros de barracas da periferia das grandes cidades italianas)

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